Entrevista à escritora Inês Rebanda Coelho, autora de "O Crepitar da Terracota, Volume I - Fogo"

Escrito em 4 de Outubro de 2024

Entrevista à escritora Inês Rebanda Coelho, autora de "O Crepitar da Terracota, Volume I - Fogo"

«Para muitas pessoas que desbloquearam novos sentidos, essa capacidade de desbloqueio começou a ser sinónimo de necessidade da ausência de conhecimento racional, ou seja, estar mais ligado à vertente emocional e espiritual, e não tanto ao lado racional humano. (…) Nenhuma chega à plenitude das suas potencialidades sem a outra. O lado emocional, racional e o espiritual têm de andar de mãos dadas.»

Numa realidade futurista, onde a digitalização e a robótica reinam, mas sem ainda a terem dominado, Ana Maria vê-se desempregada, com falhas de memória e com uma filha para criar. Neste mundo, onde a raça humana está lentamente a desaparecer e enfrenta diversas privações e desafios, Ana depara-se com uma situação que irá pôr em causa todas as suas crenças e conhecimentos para salvar alguém de grande importância para ela. O caminho escolhido irá revelar-lhe um dos percursos até à verdade, ao desbloquear novos sentidos e acessos a dimensões temporárias cuja existência desconhecia.

 

1. Como surgiu a ideia de explorar a relação entre o lado emocional, racional e espiritual numa narrativa que se passa num futuro dominado pela digitalização e pela robótica?

A ideia de criar esta história surgiu há 10 anos atrás. Na altura, lembro-me que andava a ver um anime chamado InuYasha, que retrata e personifica muito as crenças religiosas e espirituais do Japão. Lembro-me de isso me dar uma ideia para uma série de animação baseada nas crenças religiosas, mitológicas e espirituais portuguesas, então, comecei a tirar várias notas na altura e a desenhar as personagens, porque, para além de a pintura ser para mim um elemento importante no meu processo de escrita, eu não conseguia deixar de pensar em toda a história que estava a criar na minha cabeça sem ser em animação. Devido às influências que InuYasha tiveram em mim nessa altura, quando desenhei as personagens e adereços pela primeira vez, a ideia era criar um mundo mais medieval, ou seja, abordar esta mesma história, mas no passado. Por isso, todo o material que pesquisei e os desenhos que fiz na altura baseavam-se muito em designs antigos. Porém, passados 10 anos, quando finalmente tive tempo e coragem para pegar na história e criar este livro, achei que faria todo o sentido abordá-la num mundo futurista em vez de criar uma realidade num passado hipotético. Senti-me mais confortável quando comecei a explorar um futuro hipotético do que quando estava a explorar o passado, principalmente na transmissão de sentimentos, emoções e ideias essenciais que fizessem este projeto funcionar. O que incluiu também o criar de uma sensação de leitura mais numa vertente que se assemelhasse ao fenómeno de visualização que surgiu com as plataformas streaming, conhecido como binge watching, mas neste caso o que irá acontecer ao leitor é binge reading. Para o conseguir, não havia forma de não aprofundar o que para mim é a essência do ser humano: a razão, a emoção e a espiritualidade.

2. A personagem de Ana Maria enfrenta desafios tanto a nível pessoal como no contexto de uma sociedade em decadência. Que mensagem quis transmitir ao criar uma protagonista numa situação tão vulnerável?

Bem… Esta é a oportunidade perfeita para meter aquela frase cliché, mas que não deixa de ser verdade, que é “a melhor chama é aquela que arde mesmo nas condições mais adversas”. A vulnerabilidade, humanidade, mas ao mesmo tempo toda a coragem que a protagonista nos vai revelando são alguns dos seus pontos mais fortes que, inclusivamente, levam a que desbloqueie um novo sentido. Essa força também reside muito na sua resiliência, na forma como ela se perceciona a si e aos outros, ou seja, resumidamente, na sua inteligência emocional e como ela a vai conjugando com o seu lado racional e, mais tarde, com o lado espiritual. Quando conhecemos a Ana Maria, ela não acredita em nada religioso ou espiritual. Apenas numa situação de extrema adversidade é que uma personagem como ela iria ponderar, depois de a lógica, a razão e a ciência lhe falharem, recorrer à espiritualidade para obter respostas.

3. No livro, menciona-se o desbloqueio de novos sentidos e acessos a dimensões temporárias. Pode explicar mais sobre o conceito destas dimensões e como elas influenciam a viagem da protagonista?

A protagonista, assim como outras personagens importantes, tomam conhecimento de que os seres humanos possuem mais do que cinco sentidos, umas de forma acidental, outras como uma espécie de legado e outras porque procuraram obter esse conhecimento. Através desses novos sentidos, as personagens conseguem aceder a outras dimensões, a apenas parte delas ou a seres não humanos que residem nelas. O acesso das personagens a estas dimensões representa a evolução ou estagnação de cada uma delas, seja em termos emocionais, espirituais ou racionais, assim como a sua busca por conhecimento e pela verdade.

4. Em que medida a dinâmica entre Ana Maria e a sua filha Íris influencia as escolhas de Ana na sua busca por salvar alguém importante? Que mensagem sobre a maternidade e os laços familiares pretende transmitir neste contexto de crise?

Apesar de ser inevitável que as pessoas pensem que a dinâmica entre a Ana Maria e a Íris seja a de mãe e filha, acho sempre engraçado ver como as pessoas percecionam a minha obra. É bonito. A história tem mais camadas do que os leitores possam pensar e isso deve-se a um dos autores que mais admiro e que me inspirou a escrever esta obra, Lewis Carroll. Crê-se que este magnífico autor usou a sua disfunção neurológica como fonte de inspiração para criar todo o universo d’ “Alice no País das Maravilhas”. Foi exatamente isso que quis alcançar no meu livro. Apesar de não dizer em nenhum momento que a Ana e a Íris são neurodivergentes, é isso que elas representam, a minha neurodivergência e, pontualmente, a minha doença hormonal. A Ana possui muitos traços meus de neurodivergência que se mantêm enquanto adulta e a Íris espelha muito do que eu era e vivi enquanto criança neurodivergente. Eu só obtive realmente um diagnostico já em adulta, sendo que a relação que retrato entre a Ana Maria e a Íris é na realidade uma metáfora para todo o processo de reconhecimento e aceitação de que o meu cérebro não funciona como o de uma pessoa comum e está tudo bem. Isso acaba por envolver a minha versão adulta finalmente ser capaz de acolher devidamente a criança estranha e deslocada que fará sempre parte de mim, e dar-lhe a mão durante alguns momentos, assim como ela me tem dado a mim. A busca incessante por salvar alguém importante, na realidade, representa a dificuldade que é para alguém neurodivergente lidar e processar uma perda dessa magnitude. A minha versão mais nova nunca conseguiu perceber muito bem o que se estava a passar nesses momentos, enquanto a minha versão adulta ainda não sabe lidar de todo com a morte, tal como acontece com a Ana Maria.   

5. Que aspetos da história planeia desenvolver na continuação, e como imagina que a evolução dos personagens irá impactar a narrativa no próximo livro?

A evolução das personagens irá trazer muitas novidades e algumas delas prometem ser bastante impactantes. No primeiro livro há muitas pontas que ficaram soltas, ou seja, muitas perguntas que ficaram por responder, por isso, neste próximo livro há muita coisa que será revelada. Haverá novas personagens e outras que irão regressar, novas comunidades, novos países a serem explorados, novas etnias, culturas, géneros, religiões e crenças espirituais…. E muitas surpresas. Garantidamente, vocês não estão preparados para o que vem aí. 😊